UM OLHAR CRÍTICO SOBRE MOÇAMBIQUE E O MUNDO

Onde é realmente seguro beber água da torneira, no mundo?

A circulação de mapas simplistas nas redes sociais tornou-se prática comum. Um dos mais populares mostra, em verde e vermelho, os países onde se pode ou não beber água da torneira com segurança, atribuindo a autoria ao Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos Estados Unidos.

@CDC/freepik: Mulher africana derramando água em um recipiente ao ar livre

À primeira vista, a imagem é impactante: quase toda a Europa Ocidental, América do Norte e Austrália aparecem como “seguras”, enquanto África, América Latina e boa parte da Ásia são pintadas de vermelho, como se a torneira fosse sinónimo de risco inevitável. Mas até que ponto esta representação corresponde à realidade? E que implicações tem para Moçambique?

A fonte da alegação e as suas fragilidades

O CDC de facto disponibiliza recomendações para viajantes, alertando sobre precauções com água e alimentos em diferentes países. Em nações de alta renda, refere que as normas de tratamento são comparáveis às dos Estados Unidos, sugerindo que a água da torneira é geralmente segura. Contudo, não existe registo público de um mapa oficial com a rigidez cromática exibida na imagem viral. Trata-se, provavelmente, de uma interpretação derivada de recomendações de viagem, convertida num infográfico binário: verde para seguro, vermelho para evitar.

Este tipo de simplificação esconde variáveis cruciais: as disparidades entre zonas urbanas e rurais, a diferença entre bairros centrais e periferias, o impacto das chuvas ou dos ciclones, bem como a capacidade de manutenção da rede de distribuição. Dizer que “um país inteiro é seguro” ou “um país inteiro é inseguro” não resiste ao mínimo escrutínio.

Moçambique: a realidade para além do mapa

No caso de Moçambique, a realidade é clara: a água da torneira raramente pode ser consumida sem tratamento adicional, sobretudo fora dos centros urbanos mais estruturados. Estudos científicos confirmam esta situação. Em Maputo, análises recentes detectaram níveis preocupantes de coliformes fecais, E. coli e enterococos fecais em mais de metade das amostras recolhidas nas torneiras de quatro distritos municipais. 

Em alguns casos, mais de 90% das amostras apresentavam contagens bacterianas superiores ao limite aceitável segundo normas internacionais. É um dado alarmante: a capital, com maior acesso a sistemas de abastecimento, não garante segurança plena ao seu próprio consumo doméstico.

Em cidades como Beira, Dondo, Chimoio ou Pemba, a infraestrutura existe, mas não assegura uniformidade. Durante surtos de cólera ou após ciclones, as autoridades sanitárias e parceiros internacionais detectaram níveis de cloro residual abaixo dos padrões recomendados, o que compromete a eficácia do tratamento. 

Bombas manuais e fontes comunitárias, muito usadas em bairros e zonas periurbanas, revelam alto risco de contaminação. Assim, mesmo em contextos de rede canalizada, a qualidade da água oscila, sujeita a falhas técnicas, interrupções ou sobrecarga do sistema.

Nos meios rurais, a situação é ainda mais precária. Grande parte da população depende de poços e sistemas sem monitorização regular, vulneráveis a contaminações fecais ou químicas. O acesso “básico” a água segura não chega a 60% da população, e a monitorização da qualidade subterrânea é escassa, com risco adicional de elementos como fluoreto ou nitratos em certas regiões.

A armadilha das generalizações globais

O mapa viral tem mérito em chamar a atenção para desigualdades globais, mas falha por excesso de simplificação. Há países africanos ou latino-americanos que, em certas cidades, dispõem de sistemas de água comparáveis aos de países europeus.

Há também países ricos onde a água não é segura em todas as zonas (caso de comunidades rurais nos Estados Unidos que dependem de poços privados sem regulação). A verdade é que a segurança da água não se pode pintar com uma única cor num mapa, mas precisa de análises localizadas, monitorização constante e capacidade de resposta a emergências.

Lições e caminhos para Moçambique

Para Moçambique, o diagnóstico é claro: a água da torneira não deve ser consumida sem tratamento adicional, a não ser em situações onde se tenha confirmação de monitorização e desinfecção adequadas. Ferver, filtrar ou usar pastilhas de purificação continua a ser a recomendação prática mais segura. 

A longo prazo, urge reforçar o investimento em redes de abastecimento, manutenção contínua, laboratórios de controlo de qualidade e transparência na divulgação dos dados à população.

Mais do que aceitar mapas globais como verdades absolutas, Moçambique precisa de produzir os seus próprios mapas de risco, bairro por bairro, cidade por cidade. Só assim se poderá dar ao cidadão a informação que lhe permita decidir com segurança sobre algo tão essencial como a água que sai da sua torneira.

👉 Para fechar, a imagem que circula é uma meia-verdade: denuncia desigualdades, mas esconde nuances. No caso moçambicano, a realidade é ainda mais dura do que o vermelho uniforme sugere: mesmo nas cidades, beber directamente da torneira continua a ser, na maior parte das vezes, uma roleta russa sanitária.

Tete entre duas sedes: bairros sem água canalizada e torneiras com água imprópria

Comentários

Mensagens populares deste blogue

O CASO DO CENTRO DE SAÚDE DE MITEME

ENDIVIDAMENTO PREDATÓRIO - A ILUSÃO DO CRÉDITO FÁCIL

E SE USASSEMOS O ÓDIO COMO UM COMBUSTÍVEL DE MUDANÇA "POSITIVA"